quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Lisbon Revisited (1923)

NÃO: NÃO quero nada,
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!)
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-a!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

Ó céu azul - o mesmo da minha infância -
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

Álvaro de Campos

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

O conforto do conhecido

E, de repente, você tem o mundo, tanto o familiar quanto o estranho, em poucos metros quadrados! É, exatamente essa, a impressão quando estamos em uma praça de alimentação de qualquer shopping center.
Essa sensação ao mesmo tempo me agrada e me repulsa! Ah, como é bom saber, exatamente, o que virá no pedido feito em certos estabelecimentos de fast food! Mas, por outro lado, e a novidade? O aventurar-se por caminhos desconhecidos? Afinal, somos onívoros por natureza! Discurso bonito... tenho que me lembrar dele mais vezes...
São tantas as opções que o mundo moderno nos oferece, que acabamos perdidos e tendemos a escolher aquilo que já experimentamos outrora, e que não ofereceu nenhum problema ao organismo (tanto físico quanto social), é a velha estória de uma amiga que passou um mês almoçando durante todos os dias da semana em um mesmo restaurante (de shopping) e pedindo o mesmo prato, todas as vezes; somente porque tinha medo de arriscar outro pedido.
Ontem, lembrando desse episódio (que, juro, não aconteceu comigo, até porque não consigo encarar a mesma combinação por mais de três dias consecutivos), resolvi dar uma de neófita e não ir ao, bom e velho, restaurante "de guerra". Devo lembrar que eu vario os pedidos; somente o restaurante é que é o mesmo... ;)
Mas, como é difícil inovar! Fiz um passeio gastronômico até, finalmente, fazer minha escolha! Comecei especulando os sanduíches, passei pelas culinárias árabe, japonesa, italiana, americana, "caseira" e... acabei optando pela comida chinesa a quilo, tomando refrigerante e dividindo mesa com uma desconhecida!
Vale salientar que, foi a mesma comida chinesa que já comi trezentas vezes e, trezentas e uma, passei mal por causa do exagero nos condimentos. A mesma que, independente do dia da semana, tem a mesma opção de cardápio, disposto nos mesmos locais. O que me levou a "cometer" essa escolha? Ora, a familiaridade! Eu já sabia o que ia encontrar, o que ia comer e a reação que isso ia ter no meu organismo - nada que um remédio para estômago não resolva. Será, realmente, que vivemos em um momento de, intensa, gastro-anomia? Acredito que sim, pelo menos além dos muros de casa, quando a variedade de produtos e serviços, cerceiam a nossa escolha, e quando a neofobia impera, ou pelo impede de arriscar o totalmente novo, salvo quando este é acompanhado de devida apresentação por algum dos nossos pares.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Para meus queridos amigos do primeiro tipo

O poeta, certa vez, disse que "há duas espécies de livros. Uns que os leitores esgotam, outros que esgotam os leitores" (sim, ainda curto a fase "Mário Quintana"!rs); de forma semelhante, cheguei a conclusão que, também, existem dois tipos de pessoas: aquelas que nos extraem tudo aquilo que temos de melhor e as outras que, somente, fazem aflorar tudo aquilo que temos de pior. Porém, dividir o mundo em dois tipos é correr o risco de esquecer aquele terceiro tipo: os que não estimulam qualquer tipo de reação, nem para o bem, nem para o mal... Mas, sinceramente? Tendo a classificá-los no segundo tipo...
Há pessoas que, simplesmente, por existirem já nos fazem muito bem! Diferentes crenças tentam explicar tal fenômeno, umas dizem que se tratam de almas amigas, outras defendem a questão da energia, mas, para ser verdadeira, não estou muito interessada nas causas disso, mas sim nos resultados! Como é bom dividir o tempo com quem nos entende, que nos faz feliz, que nos faz sentir útil, bela (não somente na aparência física, mas por dentro!), interessante, inteligente, amável, feliz, divertida, compreensiva, leve...
Por outro lado (nem tudo são flores!), também têm aquelas criaturas que sempre nos irritam (mesmo quando não há motivo real e racional para isso), que nos inferiorizam, nos fazem sentir mesquinhos e egoístas - só porque queremos vê-las beeeeem longe! Elas extraem tudo o que no fundo (todos) temos, mas que nossa socialização faz questão de podar desde os primeiro meses de vida: raiva, sarcasmo, egoísmo, asco e outros tantos sentimentos e emoções negativas (além de um nó na garganta e um embrulho no estômago).
Mas, surpreendentemente (ou não!), quem nos faz tão mal, faz imenso bem para outrem! E, assim a vida continua, quem vai saber a real explicação para isso? Como já disse, não estou muito preocupada com isso, vou aproveitar os que me fazem bem (e que, provavelmente, também os faça) e mandar os que me fazem mal procurar quem os queiram! E já vão tarde!

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Notas de uma antropóloga

Era somente mais um dia e sua única companhia era o tédio! Nada se movia ao seu redor, nem mesmo o ar, uma vez que a temperatura parecia estar mais alta do que qualquer outro dia do ano... Através do olhar de um observador mais atento, é possível perceber que ela não estava sozinha com o tédio, a bagunça também estava a confabular consigo! Mas, só era possível encontrá-la dentro de sua cabeça: os pensamentos iam e vinham, as idéias surgiam e desapareciam numa velocidade impressionante e as coisas se conectavam e se perdiam antes mesmo que a lógica se fizesse presente!
E assim, as horas lhes escorreram entre os dedos e, sem qualquer noção temporal, sentiu fome! Parou, olhou para o relógio e concluiu que não dava mais tempo de pôr em prática sua mais recente descoberta: ela sabia cozinhar! Não chegava a ser algo excepcional, na realidade, não era! Mas, como ela mesma me disse certa vez: "minha comida é altamente comível!" (tive que resistir ao trocadinho, não seria ela, na verdade, "horrível"?) A fome faz milagres! E, como esta já era de uma intensidade respeitável, ela saiu em busca de algo para se alimentar, depois de uma intensa busca pelas prateleiras do supermercado, seus olhos ganharam um brilho mais intenso ao ler as seguintes palavras em uma caixa:
"Tudo bem, você adora a praticidade. Mas, o cheiro bom de uma refeição quentinha leva você para junto das melhores lembranças. Amor de mãe, talento da avó, tudo fresquinho e com aquele gosto inconfundível."
Não conseguiu resistir e levou pra casa! Leu, atentamente, as instruções de preparo (quase 40 minutos no forno convencional e 6 minutos - apenas! - no forno de microondas) e optou pelo meio mais rápido e prático (paciência nunca foi sua principal virtude)! Após o tempo especificado pelo fabricante, passou a comer sua porção de Penne ao molho parisiense, buscando encontrar tudo aquilo que a descrição da caixa lhe prometera, mas sua busca foi em vão! Quer dizer, mais ou menos, de fato, como me disse, a comida estava verdadeiramente quente e o gosto era inconfundível: gosto de comida industrializada!
Apesar da frustração de não conseguir encontrar nenhuma referência a sua origem familiar em relação aos temperos de sua mãe ou avó (que um dia, se fizesse sua lição de casa direitinho, também seria muito parecido com o seu) estava livre da fome e apta para retornar aos seus afazeres, sem sequer se indagar (o que poderia se esperar dela) sobre o alimento (?) que acabara de ingerir, afinal, que importância tem isso? Ainda mais se nos lembrarmos que estamos acostumados a comprar felicidade, bem-estar e prazer!

Estranhando o familiar (parte II)