"As coisas em geral não são tão fáceis de apreender e dizer como normalmente nos querem levar a acreditar; a maioria dos acontecimentos é indizível, realiza-se em um espaço que nunca uma palavra penetrou" (Rilke)
terça-feira, 19 de agosto de 2014
Uma casa ou um lar?
Nós, seres acadêmicos sem coração, temos a mania de categorizar e diferenciar palavras que no senso comum são sinônimos, fazemos isso com cozinha e culinária, com comida e refeição, com casa e lar... Desde os tempos em que era bolsista de iniciação científica fui doutrinada a perceber a "gritante" diferença entre uma casa e um lar; em linhas gerais, casa refere-se a construção física em si, enquanto o lar envolve, a grosso modo, as relações de afeto e cuidado existentes entre os moradores. Dessa forma, é possível haver uma casa e não existir um lar. As concepções de lar e de casa vão muito além das relações familiares, tanto é factível que uma família resida em uma casa, quanto um grupo de pessoas sem relações consanguíneas e de aliança constituam um lar. Eu, que já vivi em um lar, mas que agora resido em uma casa (e conto os minutos para voltar a morar em um lar), posso relatar alguns exemplos que demonstram exatamente o que eu quero dizer. A concepção de lar está intimamente relacionada a questão alimentar (tanto que lar em castelhano significa hogar, o mesmo que lareira), desde o preparo do alimento até o seu consumo; nesse sentido, um leitor precipitado pode interpretar que está havendo uma redução dos lares, já que as famílias cada vez menos socializam, durante as refeições devidos aos diversos compromissos que a sociedade moderna nos impõe, devo alertá-lo que não entrarei aqui nessa discussão já que, devido a sua complexidade, ela merece um post inteiro (quem sabe outro dia?). Recentemente, vivi a experiência de ter duas panelas pequenas de macarrão (do mesmo tipo: penne) cozinhando no fogão, dificilmente isso aconteceria em um lar, seria sim possível duas panelas de macarrão cozinhando simultaneamente, mas possivelmente elas seriam de tipos diferentes, visando a satisfação de distintos gostos alimentares entre os comensais. Extrapolando o âmbito alimentar, o cuidado com o outro está presente somente no lar, não refiro-me ao cuidado exclusivamente como formas de carinho, afeto ou algo mais emocional, refiro-me ao seu sentido mais superficial, como o fato de questionar se o outro está bem (pois está com uma aparência abatida, por exemplo), se precisa de alguma coisa, se pode ajudá-lo em alguma tarefa. Neste sentido, o cuidado que descrevo pode ser confundido com algumas regras de convivência, na verdade, eu acredito que o respeito por essas regras, além de sinal de educação e altruísmo, também significa esse "cuidado" a que me refiro, pois ao respeitar o lugar do outro, eu demonstro que me preocupo com seu bem-estar. Quando compramos ou alugamos um apartamento, ele é somente uma casa, que aos poucos pode se tornar um lar ou continuar sendo uma casa, no seu sentido mais literal. Quem possibilita essa mudança ou permanência são os moradores. Mas, em que categoria se enquadram as pessoas que moram sozinhas, e portanto, não tem outras pessoas para estabelecerem relações? Sinceramente, eu não sei responder essa pergunta (mais uma vez, me questiono sem poder dar resposta!), mas como é possível constituir uma família unipessoal, também acredito que é possível ter um lar formado por uma única pessoa, desde que ela tenha esse cuidado e esse carinho por si mesma e com as demais pessoas que a rodeiam. A única resposta que eu tenho é que não sei viver em casas, necessito de lares para me sentir plena e feliz, preciso cuidar e ser cuidada, e estou certa que isso, além de uma característica pessoal, faz parte da cultura a qual pertenço.
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