Sólon é emblemático, um belo jovem, órfão como devem ser os heróis, misterioso, terno, integrado à natureza, que um certo dia, através da doença, recebe um “aviso” e para a sua salvação é “purificado” (só os limpos podem aproximar-se de Deus) por uma feiticeira. Descobre então que possui uma pedra no peito, um “coração iluminado”, a estabelecer a sua condição especial no mundo. E será a partir de um aspecto da situação existencial de Sólon que a autora irá explorar o filão da dualidade na vida social, ou seja, conforme Simmel, pensar numa solução fácil para o dilema da convivência entre opostos é imaginar o conflito como parte da vida social, quando o ponto fundamental é entender a ambivalência como una e congruente. E será a partir desse parâmetro que ela irá ampliar o espectro da discussão sobre gênero. Sólon, seguindo as características convencionalmente atribuídas ao masculino apaixona-se por Alícia, contudo, não tarda a também descobrir o seu amor por um homem, por Rossano. Sólon explicita a sua posição sobre a afetividade: “Nunca encontrei nos livros qualquer orientação sobre os beijos. Tampouco achei quem me ensinasse como escolher a quem beijar” (p.101). Enfim, a autora procura demonstrar que em cada ser humano existe sempre uma possibilidade de inclinar-se para um sexo ou outro, com mistura e alternada preponderância de homem e mulher. Esta é uma política emancipatória, plástica, flexível, aberta, em contraposição à guetificação ou fixismo identitário. Fiquei perguntando-me porque ela estabelece a concretude da relação entre os corpos de Sólon e Rossano, o que não se verifica entre Sólon e Alicia. Mas, poderia também haver ocorrido. Mas, caso fosse essa a opção cairíamos novamente nas convenções, onde a homossexualidade poderia realizar-se no campo privado, nos subterrâneos, enquanto a heterossexualidade permaneceria dominante no campo público?
Mário Rossano, é um contraponto à condição ambígua e imaturidade de Sólon, com sua vida de aventuras, ilegalidade e violência (atributos culturalmente masculinos). Alicia, a sua amada, apesar da paixão eterna – a ponto de subverter a genética -, manteve-se atrelada a sua condição de classe, submeteu-se, infeliz, às convenções, repudiando-o. Para mim, o grande parceiro de emancipação, de liberdade de Sólon, não é Rachel com a progressiva construção da sua identidade feminista, mas antes o taverneiro Rocha, que abandonou a sua família para viver um grande amor e o faz incondicionalmente, aceitando a partilha de Madalena com outros homens, sem exclusivismo
Óbvio, o livro de Rita Sanches, realista e fantástico, merece, não uma discussão antropológica, mas sim, uma abordagem que privilegie os seus componentes literários, sua linguagem, sua narrativa e personagens, suas cores, sons, odores, seu humanismo e sua luta pela respeito à liberdade e diversidade... Enfim, é um livro que não se abandona até o seu último capítulo, como diz Hélio Pólvora, emociona.
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